26/05/2020
Carta aberta às cervejarias: por que as beer sommeliers não são substituíveis por modelos
Às micros, médias e grandes cervejarias,
Em dezembro passado, estava conversando com um conhecido sobre a minha disponibilidade para fazer freelas como sommelier de cervejas em eventos. Ele também é especialista na bebida e trabalha com consultoria para empresas no Rio de Janeiro, sendo fixo na equipe de festivais de uma cervejaria carioca.
A resposta dele entregou um machismo com o qual eu não havia, ainda, me deparado no meio cervejeiro: “posso até falar com eles (com a cervejaria), mas acho bem difícil rolar, pois eles costumam trabalhar com duas pessoas em eventos: eu e uma modelo para aumentar as vendas e sair bem nas fotos”.
Precisamos falar sobre essa frase específica: “uma modelo para aumentar as vendas e sair bem nas fotos”. Talvez movido por uma certa familiaridade com a situação, nem ocorreu a ele notar o quanto essa frase carrega a objetificação da mulher e a desvalorização do profissional do ramo. Consiste em um pensamento preconceituoso, que afeta não apenas os ideais femininos, mas também os cervejeiros, cujo propósito maior é a disseminação da cultura artesanal.
“Qual é a relevância do profissional especializado para uma cervejaria que contrata modelos em seu lugar?” Essa é a pergunta que não sai da minha cabeça desde então.
Uma das razões para eu ter me especializado em cerveja é o desejo de possuir conhecimento seguro para passar adiante a diferença que ela faz na minha vida. Sabe quando você ama muito algo e quer falar sobre aquilo com todo mundo, pois acha que todos devem provar daquilo que te faz tão bem? Então. Cerveja é experiência, sensação, cultura, boas novas, história da civilização, mudança de pensamento e comportamento, reflexo da sociedade. O resto é desejo por álcool e lucro, aí é outra coisa.
A cerveja conta histórias, sem distinção entre leigos e entendidos. E enquanto boa parte dos tais entendidos agir como se a cultura cervejeira fosse um segredo a ser preservado, dialogado entre os seus, em uma espécie de clube, ou um tipo de moda a ser seguido para fazer sucesso com as garotas, ela seguirá incompreendida e ofuscada por códigos secundários quando deveria ser a estrela principal.
Assim como em diversas outras áreas, a cervejeira pode ter um papel fundamental no mercado e na vida das pessoas. Mas, para dar conta, o seu real valor não deve ser reduzido.
Contratar pessoas especializadas é uma forma de apoiar a cultura cervejeira e a sua disseminação. Vai ficar jogando contra quando o cenário no Brasil já não é propício para o desenvolvimento cervejeiro?
Os eventos são ótimas ferramentas para iniciar o contato do público com a cerveja de verdade. É a hora de vender com intenção e cativar o consumidor. Não dá para renegar a figura do beer sommelier em seu papel mais importante.
E verdade seja dita: o posicionamento de uma cervejaria machista que busca uma modelo para aumentar as suas vendas está pedindo para ser questionado. Usar mulheres como chamarizes de venda é antiquado, ultrajante e revoltante. Práticas sociais, condutas e atitudes que promovem a negação da mulher como sujeito, marginalizando o gênero feminino, não passam de tratar as mulheres como objetos, limitando-as aos seus atributos sexuais e à sua beleza física.
Não vejo diferença entre esse episódio e os comerciais veiculados até pouco tempo por grandes cervejarias com mulheres sexualizadas. Atenção à inclusão feminina e ao respeito pelas mulheres é uma questão ética.
Aqui vale ressaltar que a posição da empresa comunicada pelo meu conhecido não é normal. A questão é pensarmos com cuidado o que chamamos de “normal”. O machismo, o objetivo do lucro a qualquer custo, nada disso pode ser visto como normal. Será que a sua cervejaria não deveria ser um pouco mais significativa?
Por mais evidente que devesse parecer a essa altura, é exaustivo ainda ter de expor cervejarias que usam as mulheres para venda de produtos.
Apesar de toda a tristeza e do risco que o surgimento da Covid-19 nos traz em escala global, a pandemia também oferece uma oportunidade de ressurgir de outra forma após o afastamento social e prova, na marra, que esse é o momento de parar, refletir e mudar, pois, como as coisas estavam até então, não dá para continuar. Fica a dica! Basta decidir se vai abraçá-la ou ignorá-la. Sigo de olho!
Anna Clara Sancho, jornalista e beer sommelier
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Tags: beer sommelier, beer sommelier mulher, cerveja, cervejaria, cultura cervejeira, disseminação da cultura cervejeira, evento, machismo, machismo no meio cervejeiro, meio cervejeiro, modelo, profissional de cerveja
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